Varridas do mapa as primeiras oficinas da Light, no Cambuci
06/06/15 11:20São Paulo era um pequeno burgo de estudantes e entreposto comercial até o início do século 20, quando a chegada das indústrias fez surgir uma metrópole moderna, com suas avenidas e seus automóveis. Em qualquer narrativa do surgimento dessa cidade, a história paulistana e a de sua industrialização se misturam.
Por esse motivo, as antigas fábricas e armazéns estão entre as prioridades de preservação para os especialistas em patrimônio histórico.
Apesar da relevância para nossa memória, edificações industriais como as antigas fábricas do açúcar União, na Mooca (zona leste), e das cervejas Brahma, no Paraíso (zona sul), vieram ao chão. Da primeira restou a chaminé, da segunda, nem isso.
Agora, foi a vez das Oficinas do Cambuci, no bairro de mesmo nome, que sumiram completamente do mapa. Sua demolição, que começou no final do ano passado, foi absolutamente legal, pois não havia nenhuma proteção municipal ou estadual sobre o imóvel.
O conjunto de oficinas da rua do Lavapés, construído a partir de 1913 pela Light & Co., foi vendido pela Eletropaulo à GTIS Cambuci Empreendimentos e Participações por R$ 160 milhões, conforme publicado na seção de “relações com investidores” no site da Eletropaulo na internet. O terreno tem 107 mil m².
Perguntei há mais de uma semana à Eletropaulo se há outros imóveis de perfil semelhante que serão vendidos, mas não obtive resposta. A empresa também não esclareceu sobre suas ações para preservar a memória do setor elétrico em São Paulo.
Não é nem preciso dizer que áreas como essas são cobiçadas pelas construtoras em um cenário de escassez de terrenos no centro expandido, pois permitem construir grandes empreendimentos sem a chateação de ter que negociar uma dezena de sobradinhos, com proprietários relutantes, durante anos, para poder erguer os populares condomínios-clubes.
Um bom projeto para a área, mesmo que fosse de condomínio, poderia tirar partido das construções antigas. Mas eu não tenho notícia de que um empreendedor tenha preferido aproveitar as preexistências em seus projetos, a não ser quando tenha sido obrigado por lei ou por resoluções de órgãos de preservação a fazê-lo.
Pode-se argumentar que a própria população não valoriza o patrimônio, especialmente o industrial, reconhecendo valor mais em palacetes do que em velhas indústrias obsoletas. Desconfio que há certa verdade nisso. Mas, para reconhecer a importância desse patrimônio, a população teria que conhecer a importância da industrialização para a história da cidade de São Paulo, tópico que não é suficientemente abordado nas escolas.
Depoimento do historiador Carlos Guilherme Mota, autor de “Ideologia da Cultura Brasileira” e antigo morador da rua do Lavapés, sobre as oficinas e sua demolição
Em 1948 eu era um menino que vivia na rua do Lavapés, no Cambuci, em frente à Light e a aquelas poderosas instalações no estilo inglês. Na curva da rua, na altura do número 226, havia naquele momento pequenos sobrados, casas térreas geminadas, o armazém de alimentos do seu Perrone, a marcenaria do seu Cecchia. Tinha também a enorme fábrica de chapéus Ramenzoni e outras fábricas ali naquele pedaço. Mas o que impressionava mesmo eram as grandes oficinas da Light & Co.
Ao mesmo tempo, quando eu voltava do Grupo Escolar Oscar Thompson no largo do Cambuci, a três quarteirões dali, era a hora do almoço dos operários, depois que as chaminés apitavam (apitavam às 7h, às 12h e às 18h), como no samba do Noel Rosa, aquele “apito da fábríca de tecidos vem ferir os meus ouvidos”… Aquelas oficinas abriam suas portas, quando as pessoas se reuniam fora e saiam em pequenos grupos para almoçar. Eu via então os operários de macacão manchado de graxa, mãos sujas de óleo, que se sentavam nas calçadas, encostados nos muros, com aquelas marmitas fantásticas.
Eram em geral filhos ou netos de imigrantes, operários simples, mas muito educados, muito urbanos. E eu magrelo passava e via o que estavam comendo. Comiam aquela comida tão bem preparada, e os que não tinham aquilo comiam um belíssimo sanduíche de mortadela, às vezes com uma cervejinha. Eu chegava em casa, uma casa comprida e geminada de pequenos burgueses brasileiros, professores, e não tinha aquela comida deliciosa. Mas não comíamos mal…
Ao lado dessas oficinas que foram demolidas, havia sobradinhos e mais sobradinhos. Alguns eram pensões. Tudo muito modesto, mas muito arrumadinho. Podia-se ver um operário e outro com um livro na mão, ou panfleto. Era raro, mas se via. O jornal popular sim, isso com certeza. Eu passava por eles e havia um tratamento ou, quando menos, um olhar cordial.
E como pano de fundo eram aquelas oficinas enormes, com muros muito longos e altos, a rua com bondes passando nas duas mãos, ali na Lavapés, da rua do Glicério até o largo do Cambuci, onde no alto de uma montanha tinha a igrejinha em que tentaram que me batizar, mas de que eu fugi.
Hoje está havendo uma desconsideração muito grande com essas remanescências industriais.
Deveria haver um tombamento rigoroso e uma requalificação radical, com mobilização da sociedade. Pois a rua do Lavapés está um horror, destruída, inabitável, perigosa, desumanizada, brutalizada. Não foi requalificação o que aconteceu com o Sesc Pompéia pela visão de Lina Bo Bardi? Portanto, não é por falta de exemplos. Não precisamos buscar modelos lá fora. O que está havendo é que arquitetos e urbanistas, Conpresp e Condephaat, universidades e associações estão todos dormindo. Não se trata só de fazer o tombamento, mas de convocar os professores do Mackenzie, da USP, da Unicamp, da Belas Artes e outras faculdades para se organizarem e levarem a sério isso.
Porque essa cidade, São Paulo, é um ícone, uma referência na história mundial das indústrias. São Paulo foi o principal polo industrial da América Latina. São Paulo é uma referência semelhante à da Inglaterra da Revolução Industrial e da história da cultura da industrialização. Também talvez Chicago nesse sentido. Se tivéssemos algum brio, poderíamos convocar as congregações universitárias e departementos para sair dessa modorra e desse silêncio.
A repatrimonialização é algo que aponta na direção de uma sociedade nova, que de resto não estamos conseguindo enxergar, por culpa de falta de projeto político-cultural do PT, PSDB, PMDB que não conseguem sequer equacionar esse tema/problema.
As pessoas não levam a sério o que é esse patrimônio, sua importância para a cidadania. Como se o que restou de 1920, 1930 não fosse antigo. As pessoas ficam na rua andando com seus celulares como zumbis, olhando o Whatsapp, com fones no ouvido, e não percebem a história riquíssima da industrialização em São Paulo, que foi o polo em que a modernização se deu de modo mais avançado na América Latina. Estamos correndo em alta velocidade, de costas para o passado. Reclamamos muito, porém não sabemos “ler” a cidade. Hora de mudança de mentalidades.