Há duas semanas, o caderno “Ilustríssima” publicou um texto meu sobre os três volumes da obra “Os pioneiros da habitação social”, organizado pelo urbanista e vereador Nabil Bonduki (PT) e pela arquiteta Ana Paula Koury.
Naquele texto, “Já fomos tão modernos”, eu dei ênfase ao conteúdo mais arquitetônico dos livros, ou seja, aos volume 2 e 3.
Mas a análise dos autores vai bem além da arquitetura, e este post é sobre a história das políticas habitacionais no Brasil, tratada especialmente no volume 1, “Cem Anos de Política Pública no Brasil” [Nabil Bonduki, 400 págs., R$ 145]. Nele, o arquiteto mostra como as visões políticas e os modos de financiamento de cada período moldaram a produção de moradia popular desde a construção das primeiras habitações públicas no bairro operário de Marechal Hermes, projeto do governo federal construído em 1912, no Rio.
A abordagem do trabalho é sempre crítica, como quando o arquiteto explica as origens da ideologia da casa própria, a partir do regime militar, atuando de modo a pacificar os trabalhadores e afastar a “ameaça comunista”. “A casa própria faz do trabalhador um conservador que defende o direito de propriedade”, disse então Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH, o Banco Nacional da Habitação criado pelo regime militar.
Naquele momento, os conjuntos passaram a ser construídos na periferia, em um “urbanismo equivocado”, que falhou grosseiramente na criação de cidade, colocando o foco apenas na produção de moradias. Herança que se manifesta até hoje nas metrópoles brasileiras, por meio de segregação espacial, trânsito caótico e violência urbana.
Até 0 golpe, em 1964, os operários moravam de aluguel. Fosse no liberalismo da República Velha (quando cortiços e vilas operárias eram produzidos pelo mercado), fosse na era Vargas, que elevou a habitação a questão de Estado com a produção de conjuntos habitacionais pelo governo.
Na análise da era Vargas, Bonduki mostra que o Estado, ao produzir habitação, “agiu, conscientemente ou não, para reduzir o custo da reprodução da força de trabalho, que contribuiu para as altas taxas de acumulação de capital e para o esforço de industrialização que marcam o período”. A conclusão, original, vem da própria tese de doutorado de Bonduki, embrião do esforço de pesquisa que resultou nos livros agora publicados.
A maior parte da habitação daquele período foi financiada pelos então recém-criados IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões), cuja finalidade central não era, claro, a produção de teto para seus associados: essas moradias de aluguel eram vistas como uma estratégia de investimento rentável para os fundos dos institutos.
O conjunto de Pedregulho, projeto de Eduardo Affonso Reidy no Rio de Janeiro, é a produção paradigmática desse momento. A lâmina única e sinuosa de Reidy ganhou o mundo em livros e revistas, e sua plasticidade, unida à racionalidade moderna, foi aclamada por críticos como Max Bill, que repudiavam a arquitetura de “formas gratuitas” de Niemeyer.
Bonduki e Kouri veem Pedregulho como a “joia da coroa”, mas procuram em sua obra desmistificar uma concepção amplamente difundida de que o conjunto carioca fosse apenas uma exceção à regra. E mostram, especialmente no volume 3, como os conjuntos daquela época são atuais para enfrentar a questão da habitação.
Os IAPs tinham uma política habitacional definida pelo próprio Getúlio Vargas: deveriam prover os serviços básicos e estar acessíveis à cidade por meio de transporte público, naquela época, trens e bondes.
Também dos IAPs é o conjunto Japurá, de 1942, que inovou ao erguer moradia popular no centro da capital paulista, quando as áreas destinadas a esses empreendimentos costumavam ser os bairros operários como a Mooca ou o Brás, mais afastados. A questão da moradia popular no centro só entraria na agenda urbana brasileira no começo deste século, sessenta anos depois.
A construção do Japurá, em frente à Câmara Municipal, foi simultânea à da Unidade Habitacional de Marselha, e o arquiteto Eduardo Kneese de Mello incorporou ao projeto a ideia de habitação mínima de Corbusier, que era o aproveitamento máximo do espaço considerando as necessidades humanas, fazendo da casa operária uma “máquina de morar”.
Não é preciso lembrar que a arquitetura moderna brasileira vivia seu grande momento, mas Bonduki vê outras explicações para a qualidade dos conjuntos daquela época, especialmente os financiados pelos IAPs.
“A manutenção das áreas comuns dos conjuntos habitacionais era do próprio Instituto. Isso também facilitava essa questão do espaço público, de vários elementos que estamos valorizando hoje. Já a lógica atual é de transferir para o morador a responsabilidade, é a lógica do Estado mínimo”, disse o autor em entrevista.
Bonduki mostra que, apesar de a escala de produção habitacional ter sido ampliada no regime militar, ela atendeu apenas as classes média e média baixa (assim como no período Vargas), deixando um grande contingente de pessoas pobres sem opção, sob vistas grossas do Estado, enquanto a população urbana brasileira crescia de pouco mais de 16 milhões de pessoas em 1950 para 138 milhões. A favelização generalizada é herança justamente daquele período.
Ainda assim, alguns conjuntos da ditadura, como o do Cecap, projeto de Joaquim Guedes em Campinas, e o Cafungá, de Sergio Magalhães, no Rio, tinham planos urbanísticos que “dialogam com o meio físico e criam espaços coletivos de qualidade”.
Com a redemocratização, em 1986, os recursos para a habitação, que já estavam escassos no final do regime militar, minguaram ainda mais. As “décadas perdidas” da economia brasileira costumam ser consideradas perdidas também no setor da habitação, devido à pequena produção e ao desmantelamento do sistema de financiamento de moradias populares.
Mas Bonduki lembra que foi justamente naquele período que avanços importantes na política urbana ocorreram. Os setores sociais ligados à questão da moradia se mobilizaram e, como resultado, pela primeira vez uma constituição brasileira ganhou seção específica sobre desenvolvimento urbano. A habitação se tornou um direito e a propriedade da terra ficou condicionada a sua função social (ainda que predominantemente só na teoria).
Na falta de uma estratégia nacional para a habitação, alguns programas foram formulados em nível municipal, com maior participação popular. Em São Paulo, essa participação se estendeu inclusive à construção da moradia, por meio dos mutirões da administração de Luiza Erundina (PT) na prefeitura.
Depois de traçar esse panorama histórico, Bonduki conclui com a crítica ao mar de casinhas produzido pelo Minha Casa Minha Vida, embora conceda que houve um avanço, representado pela criação de um fundo nacional para subsidiar a habitação. Com o subsídio, pela primeira vez, as políticas conseguem atingir a baixa renda, ao menos nas cidades menores. Nas metrópoles, o preço da terra inviabiliza essa produção, a menos que contrapartidas do Estado e do município sejam oferecidas, a exemplo do proposto no Casa Paulista, programa em fase de implantação na cidade de São Paulo.
Para Bonduki, tudo era para ter sido muito diferente. Entre 2007 e 2008, um amplo plano nacional de habitação foi elaborado pelo Ministério das Cidades para dar conta da demanda por moradia social estimada em 35 milhões de unidades até 2023. Entre 2003 e 2008, os recursos totais destinados à habitação haviam se elevado de cerca de R$ 8 bilhões para mais de R$ 42 bilhões, dando condições para o governo investir na produção massiva de habitação, como na época do BNH.
“O PlanHab pode ser entendido como o último grande esforço para operacionalizar a concepção de política habitacional tributária do movimento da reforma urbana”. De acordo com o autor, no Programa Minha Casa Minha Vida, restou apenas, e parcialmente, a estratégia de financiamento e subsídio.
Sob o título “A aproximação do governo Lula como o setor da construção civil”, Bonduki mostra como o PlanHab foi substituído pelo MCMV (idealizado dentro do Ministério da Fazenda) e transformado em uma política econômica anticíclica em um momento de ameaça de crise econômica.
O tão sonhado PlanHab sofreu o segundo golpe com a “degradação” do Ministério das Cidades após o escândalo do Mensalão, quando Lula buscou ampliar seu apoio no Congresso. A pasta, que até então estava sob o controle do PT, passou para as mãos do PP de Maluf, frustrando de vez as expectativas de urbanistas como o próprio Bonduki.
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