Um vazio que grita no Martinelli
20/04/15 16:45Outro dia, descendo a rua Líbero Badaró, uma mudança na paisagem me chamou a atenção: uma moldura gigante contornando um retângulo vazio surgiu na empena cega (a lateral sem janela dos prédios) do edifício Martinelli.
Quando os novos prédios altos começaram a ser erguidos no início do século 20, era comum que tivessem algum tipo de tratamento decorativo, como a pintura ou aplicação de molduras, naquelas paredes vazias que podiam ser vistas de diversos pontos da cidade. Uma espécie de “gentileza urbana” das antigas.
No caso do Martinelli, essa empena e sua moldura serviram por muitos anos como suporte para um anúncio publicitário. A prática também já era comum na época, quando a cidade de São Paulo, antes um entreposto comercial com construções em taipa de pilão, buscava sua afirmação como metrópole moderna.
O Martinelli veiculou por muitos anos anúncios não só naquela empena. Exibiu outras faixas publicitárias, além de letreiros de neon dependurados nas mansardas, dando uma cara de Moulin Rouge compridão ao edifício.
Mas o miolo da moldura não é exatamente vazio. Ao observar atentamente, veem-se os vestígios da grande garrafa de Fernet Branca (bebida então importada pelo próprio conde Martinelli) que foi pintada há muitas décadas ali. No entanto, pelo contraste com o cor-de-rosa do restauro, criou-se um vazio que parece gritar.
Apesar de a moldura ser revelada com o restauro, o uso antigo da empena como suporte para anúncios publicitários não foi recuperado. Seria possível ou mesmo desejável resolver essa contradição?
Com o painel como está, o aparente vazio emoldurado marca uma antiga presença, remetendo ao que um dia existiu ali, mesmo que um olhar distraído não perceba o “fantasma” da Fernet. Comigo funcionou: fiquei curiosa e encontrei fotos que mostram os anúncios antigos, e de alguma maneira a memória foi preservada.
Se a empresa do aperitivo Fernet Branca recuperasse o anúncio desbotado, resgataria também a prática de usar as empenas como “outdoors”, num restauro integral.
Por outro lado, caso a prefeitura abrisse uma exceção na Lei Cidade Limpa para liberar ali anúncios vintage (talco Granado, sabonete Phebo, pomada Minâncora, Leite Moça, Maizena etc.), de novo estaria permitindo o resgate dessa prática, mas produziria um pastiche. No entanto, o dinheiro arrecadado com a cobrança pelo espaço publicitário poderia ajudar na conservação do edifício.
E ainda, de forma mais liberal, a prefeitura poderia autorizar qualquer tipo de anúncio, recuperando a prática, financiando a manutenção, mas de forma atualizada.
A preservação do patrimônio histórico é assim, complexa. Reconstituições integrais nem sempre são a melhor solução para manter a memória das cidades.
Não há um manual definitivo do que deve ou não deve ser feito. Para discutir essas questões, há mais de uma dezena de cartas de princípios produzidas em congressos dedicados ao tema desde 1931, quando foi elaborada a Carta de Atenas. E os contextos sociais e históricos de cada situação de preservação e restauro também precisam ser levados em conta.
De minha parte, gosto da contradição criada com a moldura que parece esperar um preenchimento. E você, o que acha?