Urbanismo ecológico: a cidade como projeto político
19/11/14 13:06O urbanismo sustentável é muitas vezes apenas um “clichê”, uma “forma de legitimação técnica para promover soluções convencionais”, de acordo com Mohsen Mostafavi, 60, diretor da Faculdade de Design e Arquitetura da Universidade Harvard, nos EUA.
Já o chamado urbanismo ecológico, tema e nome de um novo livro organizado pelo iraniano-americano, se propõe a pensar a cidade também sob as dimensões política, ética e estética, numa síntese entre ecologia, economia política da cidade e design.
“Quando digo que o urbanismo ecológico é um projeto político, quero dizer também que a cidade é um lugar de conflitos, não só de consenso. E a cidade precisa ter uma estrutura para esse embate”, diz o diretor.
Leia abaixo a entrevista exclusiva concedida por Mohsen para a Folha (um pequeno extrato da conversa já havia sido publicado no caderno “Cotidiano”) quando ele esteve no Brasil para o lançamento do livro “Urbanismo Ecológico” [GGili, 656 págs., R$ 120]. Na conversa, Mohsen também falou do papel do arquiteto como profissional e comentou a qualidade de projetos de Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas, em oposição a uma arquitetura de ostentação que se difunde tanto aqui como nos EUA.
Qual foi sua primeira impressão da cidade de São Paulo como arquiteto?
[Tive a impressão] que é uma cidade incrivelmente dinâmica, que um monte de coisas estão acontecendo, que as pessoas são muito sociais. Isso é muito palpável. Você sente aqui que há participação das pessoas, engajamento. É um uso da cidade muito diferente do que se vê nos Estados Unidos.
É curioso você ter comentado isso, porque entendemos com um problema da cidade a falta de convivência no espaço público. Talvez isso esteja latente e seja só uma questão de promover.
Certamente vocês têm isso em vocês.
E, afinal, o que é urbanismo ecológico?
É vermos nossas cidades de uma maneira diferente, combinando diferentes sensos de estética, política e ética, ao mesmo tempo sendo mais sensíveis à limitação de recursos naturais. O que não é o mesmo que cidade sustentável ou arquitetura sustentável.
Qual é a diferença?
A diferença é que, quando as pessoas pensam sobre sustentabilidade, muitas vezes elas estão pensando apenas em gerenciamento de recursos limitados, de modo a usá-los menos. A ênfase recai sobre a redução do gasto de energia, com vidros que deixam passar menos insolação, esse tipo de coisa. Isso é bom. Mas sabemos que esse sistema se baseia em uma posição moral, no sentido de que é a coisa certa a se fazer. Projetamos coisas que são boas na intenção, mas o que fazemos em nome de boas intenções nem sempre é bom. Porque não há uma correlação forte entre intencionalidade e resultado.
Para mim, a ideia de uma dimensão de desempenho da cidade é um aspecto inseparável do urbanismo ecológico. Temos que fazer duas coisas ao mesmo tempo. Podemos ser mais cuidadosos e, ao mesmo tempo, melhores?
O que você quer dizer com desempenho?
As coisas têm um desempenho funcional, mas também um desempenho social, espacial. Você vai no centro comunitário da Lina Bo Bardi [Sesc Pompéia], que muitas pessoas dizem que é o melhor deles [dos Sescs]. Mas por que é tão apreciado? Porque as pessoas estão usando ele de fato. Da entrada, passando pela biblioteca, ao banho de sol, à piscina, tudo tem uma atmosfera particular. Portanto, a ideia de performance se torna muito próxima de atmosfera, de sensação.
Você me perguntou sobre minha primeira impressão da cidade: era uma pergunta sobre atmosfera. Claro que não há uma receita para criar atmosfera. Na medicina, para se descobrir a cura de uma doença, é preciso pesquisa. Nas cidades também é assim. A questão também é metodológica: como devemos fazer a cidade? Por um lado, é um tipo de posição filosófica e política; por outro, é a busca por um novo método, por novas formas de fazer as coisas, e que variam de lugar para lugar.
Então o urbanismo ecológico também faz parte da crítica da arquitetura moderna, que buscava soluções universais para o problemas das moradias e do urbanismo?
Sim, há uma crítica do zoneamento modernista, da separação de zonas, com o lugar das casas separado da dimensão do trabalho, do lazer. Em cidades antigas, por causa de seu desenvolvimento orgânico, você vê mais fusão entre as diferentes funções. Mas a natureza das nossas cidades está mudando. Não é necessário ser romântico sobre as coisas, querer apenas o que é tradicional, o que foi a manifestação da vida em um determinado momento. A mistura de funções também é um jeito de fazer a crítica do planejamento modernista. Precisamos encontrar uma alternativa.
Os EUA foram na mesma direção do planejamento modernista. Ou então para o “novo urbanismo”, que é essa ideia de uma versão mais nostálgica da cidadezinha, da casa, onde todo mundo é amigo, existe uma comunidade, todo mundo concordando, somos todos bonzinhos. Só que não é bem assim. Então, quando digo que o urbanismo ecológico é um projeto político, quero dizer também que a cidade é um lugar de conflitos, não só de consenso. E a cidade precisa ter uma estrutura para o conflito. Não para ficarmos brigando uns com os outros, mas no sentido que é possível discordar. Apenas quando as cidades se tornam lugar de dissenso elas se tornam lugares da democracia. O urbanismo ecológico também pensa o espaço como componente importante da democracia.
E como se projetam lugares para esse embate?
Em certas tradições literárias há muita descrição de vidas que estão acontecendo no contexto de diferentes cidades, com uma visão inseparável da vida e do lugar. Quando James Joyce escreve sobre a vida, está escrevendo também sobre Dublin como um lugar. A localização, a altitude, as montanhas que a circundam, mas também a cultura das pessoas. Então, pra mim isso é importante.
Neste livro [Urbanismo Ecológico], eu tento colocar escritores diferentes para escrever sobre cidades diferentes. Quando você quer fazer um projeto, você desenha imaginando o que vai acontecer naquele desenho. E, ao mesmo tempo, você não quer controlar. E às vezes funciona, às vezes não, ou chega perto do que você imaginou, ou é só ligeiramente diferente. Mas é necessário imaginar o que pode acontecer no ambiente, em vez de imaginar apenas tipologia pura. É pensar que certa tipologia tem uma consequência.
As pessoas em São Paulo na rua, as famílias sentadas num café, a mistura de diferentes classes sociais mostram interações operando no espaço. Parece que é uma coisa simples, mas não é. Quando você tenta criar, como urbanista, a possibilidade de metodologias alternativas, você também está criando metodologias que não são neutras. Elas têm uma posição, que é também possibilitar diversos níveis e formas de participação.
Estou agora terminando um terceiro livro, chamado “Ética do urbano: as cidades e o espaço do político”. E esse é sobre a relação do que nós consideramos como ético, com o que consideramos político e como nas cidades existem determinados lugares de ação política. Você vê o que aconteceu na Turquia, no Egito, no Brasil. Há certos tipos de lugares que quando as pessoas têm que dizer algo, elas têm que dizer naquele lugar.
Mas deve haver alguma característica comum em projetos de urbanismo ecológico…
Uma coisa que é importante é a densidade. A aproximação ajuda a economizar energia. Diz-se que quanto mais denso, mais sustentável. Então Nova York é provavelmente a cidade mais sustentável dos Estados Unidos, onde as pessoas usam o transporte público e dependem menos do automóvel. Nos EUA, nós sabemos, estatisticamente, que as casas estão ficando cada vez maiores, e que há um espraiamento. O quanto é o suficiente? O que você precisa em sua vida para que seja suficiente? Como ter mais qualidade com menos? Como criar espaços para morar em que haja combinação de vida ao ar livre, mas também densidade?
Um arquiteto francês que não gostava muito da moradia mínima proposta pelo do modernismo tentou maximizar o espaço externo dos apartamentos. Em arquitetura isso é chamado design paramétrico: o foco em uma condição específica, maximizando ela. Ao fazer isso ele estava inovando, criando um tipo particular de edifício, da mesma forma que a Lina Bo Bardi quando pegou uma fábrica [onde está hoje o Sesc Pompéia], e pela ideia de reuso adaptativo, criou algo que não existia. É uma espécie de reciclagem. O exemplo de Bo Bardi e do arquiteto francês são inovadores.
Naquele projeto do Artigas próximo daqui tem um arranjo de janelas que se abrem e se fecham afetando o desenho da fachada do edifício. Artigas estava pensando no design do edifício, mas também na luz, no sombreamento. É inovador. Esse é um exemplo da ideia de urbanismo ecológico, que pensa nas condições do lugar, do terreno na colina, a entrada, a qualidade de vida. E aquele edifício é muito diferente dos outros ao redor dele, ou que estão sendo construídos agora, que têm mais a ver com opulência, monumentalidade. Que servem para as pessoas ricas dizerem: ei, eu moro em um apartamento muito caro, com colunas e sacadas enormes. Estes prédios podem ser bem feios, é problemático.
Então, no fim, é uma questão de valores. E os valores estão se movendo mais na direção desses edifícios grandes, pomposos, exuberantes e ostentatórios. Enquanto no projeto de Artigas há um tipo de humildade, mas também um tipo particular de beleza. É preciso aplicar esse tipo de sensibilidade na cidade, nas áreas abertas, no uso do transporte, na redução do uso do carro. É uma combinação de objetivos. É o aumento da infraestrutura, o que é uma forma de presente para os cidadãos, mas também pode ser uma maneira de discriminar as pessoas. Se você está projetando uma cidade, você também precisa pensar na questão da democracia. Na França eles estão alocando os imigrantes nos subúrbios. E não há sistema eficiente de transporte entre o subúrbio e o centro. Então isso também significa um tipo de segregação.
Já que você mencionou isso, São Paulo é bastante segregada, com a população pobre morando na periferia. As classes média-alta e alta acabam ditando em grande medida a agenda do urbanismo da cidade, e a infraestrutura continua se concentrando nos bairros mais consolidados. Como enfrentar essa contradição?
Os governos recorrem cada vez mais à iniciativa privada, ao capital privado. A questão na maioria dos lugares é: do que o governo está abrindo mão quando ele colabora com instituições privadas? Eu acho que, por não terem recursos técnicos e profissionais suficientes para imaginar como as coisas podem ser, por não haver uma visão, apenas um planejamento, não há a possibilidade de mudar o que está configurado, para fazer a urbanização e as melhorias na região onde a classe trabalhadora vive.
A falha fundamental é a maneira como muitas agências governamentais trabalham com as empresas. Eles não pedem o suficiente em troca. Principalmente porque não sabem o que pedir. Mas a arte de desenhar cidades enquanto a arte de criar um lugar foi abandonada pelos governos municipais.
Não há saídas?
A menos que as cidades abracem o conhecimento que é necessário para se engajar nessa tarefa, não há esperança. Porque sempre haverá essa situação política em que os mais ricos têm muito mais capital político e conseguem ser mais bem sucedidos em suas demandas. Daí a discussão ser também sobre ética e política. O que buscamos em uma escola de design não é dizer “olha, eis aqui um novo método” mas sim “ei arquiteto, planejador, urbanista, você não deve ser apenas um profissional do design”. Esses profissionais precisam estar absolutamente engajados na discussão política. A ideia de apenas desenhar belos quarteirões ou conjuntos habitacionais é idiota, é loucura, se você não conhece as consequências políticas. Por isso, em lugares como a Europa e os EUA o status de arquitetos e urbanistas caiu na sociedade, comparado com o de advogados e médicos, por exemplo.
Mas também há a crítica ao planejamento urbano, que é a ideia de que as políticas públicas são separadas do projeto urbanístico. Os dois são como ingredientes de uma receita. Deve existir um escritório de desenho urbano municipal que proponha projetos como parte de um plano global e que diga “aqui deve ser feito um edifício de 40 andares”, por exemplo. Em uma cidade como São Paulo a questão é mais reconstruir do que expandir, pois há muitos lugares com edifícios industriais. Então, ou através da reciclagem ou da reconstrução, a prefeitura precisa dizer como esses diferentes setores devem ser conduzidos dentro da cidade. Se o governo apenas faz políticas mais genéricas, dizendo o que é permitido construir em cada setor da cidade, o resultado é que você tem todos esses edifícios que dão um jeito de contornar as regras para fazer coisas do tipo rico-extravagante. E aí as políticas podem ter consequências bem negativas.
Prédios com selos de qualidade ambiental, completamente vedados e com ar condicionado podem no Brasil, onde não há invernos rigorosos, ser considerados verdes de fato?
A certificação Leed é uma exemplo perfeito do que eu estava falando antes, dessa posição moral baseada em quantificação. O Leed não se importa se você está desperdiçando algo, desde que você seja bastante responsável com a sua “pele de vidro” [tradução livre de ‘triple glazing’; no Brasil existe apenas a vedação completa com vidro, mas não a parede tripla]. Não há uma postura ética. E eu acho que nesses lugares é muito importante entender o clima, entender o que acontece, a que as pessoas estão acostumadas, e pensar em um edifício que responda mais ao meio ambiente. Assuntos como design sustentável podem produzir clichês. As pessoas usam selos de edifício sustentável para dizer que estão fazendo uma coisas boa, como argumento de venda.
Na Europa, nos EUA, o Leed tem sido algo bom no sentido que as pessoas se tornaram mais conscientes sobre o consumo de energia dos edifícios, mas não há reflexão sobre se tudo isso faz sentido mesmo. É uma abordagem amplamente aceita, porque tem a ver com submeter dados e receber um certificado. Mas não é uma abordagem alternativa. No Brasil, um exemplo de boa arquitetura é a maneira como vocês usaram o “brise soleil” [parassol] para criar sombreamento, para barrar o sol. A partir da influência de Corbusier e da primeira geração de modernistas, se criou algo que respondia às condições locais do Brasil. E acho que precisamos de mais coisas assim. Aí a pergunta: como podemos fazer isso?
Veja esse edifício atrás de você [da Fiesp, na avenida Paulista]. Ele procura criar sombreamento através de um efeito de pele [o prédio é recoberto por uma malha metálica]. Por isso a discussão do urbanismo ecológico tem muito a ver com as circunstâncias e uso dos recursos locais. Mas há também perigo quando nos tornamos muito provincianos, muito locais, muito comunidade. Por isso é importante pensar o quadro mais geral em uma cidade como São Paulo, onde há diversidade, onde existe a capacidade para o dissenso, para pontos de vista diferentes, coisa que não existe em uma pequena comunidade.
————————–
Curta a página do “Seres Urbanos” no Facebook aqui.