'Quem projetou a Daslu não pode projetar o anexo do Masp'
23/10/14 23:43Apreciadores da obra de Lina Bo Bardi comemoraram no começo deste mês o anuncio da nova diretoria do Masp de devolver os cavaletes de vidro à pinacoteca do museu. Mas a decisão, museográfica, agora suscita entre arquitetos discussões sobre a urgência do restauro de todo o edifício e sobre a inadequação do projeto arquitetônico do anexo.
“As pessoas não têm ideia de que as últimas gestões destruíram a arquitetura do museu”, diz o arquiteto Marcio Kogan – que está hoje no conselho do Masp. “O museu, internamente, não pode nem mais ser considerado uma obra de Lina Bo Bardi, de tão alterado que está”.
Às vésperas do centenário de seu nascimento, Lina desperta a atenção do mundo. O British Council organizou na Inglaterra um programa de bolsas que patrocina duas viagens por ano para jovens pesquisadores virem ao Brasil estudar a obra dela. Barry Bergdoll, curador de arquitetura do MoMA, é um de seus entusiastas: “Lina Bo Bardi tinha enorme talento em vários campos, da arquitetura à expografia, do desenho gráfico ao mobiliário.”
A percepção de que o Masp, considerado obra prima de Lina, está descaracterizado é compartilhada por Renato Anelli, diretor do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi e professor da USP. Para ele, o legado de quase 20 anos das últimas gestões foi a “eliminação radical de todos os vestígios da concepção museológica de Lina Bo e Pietro Bardi”.
Márcio Kogan cita uma intervenção que é representativa do tratamento que foi dado ao edifício: a troca do piso do Hall Cívico, originalmente de pedra goiás, vinculada à arquitetura popular brasileira, por outro de granito, mais associado a uma certa arquitetura de ostentação que predomina hoje na cidade. A mudança subverte a “Arquitetura Pobre” que Lina concebeu para o museu, após passar uma temporada na Bahia. No memorial da obra, ela comenta esse aspecto:
“Através de uma experiência popular cheguei àquilo que poderia chamar de Arquitetura Pobre. Insisto, não do ponto de vista ético. Acho que no Museu de Arte de São Paulo, eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas.”
Para Márcio, o novo conselho é bem intencionado, “mas não tem muita ideia de onde está. Não percebi na pauta da reunião que a restauração do prédio é uma preocupação”.
Se a remoção do piso original é um detalhe simbólico, a volta da transparência total da pinacoteca, com remoção de divisórias e vedações que hoje impedem a entrada da luz natural, é a prioridade máxima para os dois arquitetos e para Marcelo Ferraz, que trabalhou com Lina e hoje é sócio da Brasil Arquitetura.
“A pinacoteca do segundo andar recebia luz do dia pelas duas laterais, se via a cidade lá de dentro”, diz Ferraz. Segundo ele, já existem soluções técnicas para proteger as obras da luminosidade e do calor, como vidros que filtram a luz do sol, hoje usados nos modernos edifícios de escritórios.
Em artigo publicado em 2009 no portal “Vitruvius”, revista eletrônica de arquitetura, Renato Anelli já havia falado sobre a “concepção de dessacralização da obra de arte” presente na ideia de um museu transparente, visualmente aberto para a cidade, em oposição aos museus europeus, fechados, com obras dispostas em ordem cronológica.
E há pressa para a volta da transparência, já que os holofotes estão sobre a obra de Lina nas comemorações do centenário de seu nascimento, com exposições, mostras e livros sendo lançados aqui e no exterior. “A gente gostaria que isso fosse apresentado ao público neste ano. Seria um gesto comemorado no mundo inteiro”.
Depois da pinacoteca, os desejos de retorno da transparência original se voltam para o Hall Cívico. “Não se tem mais a noção que é tudo aberto para o vale. O hall e a biblioteca estão fechados. A sensação é de se estar em um subsolo, e não na encosta, como é de fato”, diz Ferraz. E lembra que, desse espaço, se via o paisagismo dos fundos do museu, com “cascatas e plantas e jardins de papiros maravilhosos”. Hoje, diz, os espelhos d’água estão cheios de brita. “É preciso resgatar o museu como um todo”.
O último disparo de Ferraz é para o anexo do Masp, no edifício ao lado. “Tem uma arquitetura medíocre como a maioria dos edifícios da avenida paulista, mas deveria estar à altura da ousadia de Lina. O projeto é do Júlio Neves [último presidente do museu]. Quem projetou a Daslu [Neves] não pode projetar o anexo do Masp.”
Renato Anelli também acha a arquitetura do anexo, de vidro espelhado, “fraca”, e Márcio Kogan já deixou claro para a nova gestão que não apoiará o anexo com o projeto atual.
Apesar de todas as alterações que pesam sobre o museu e do desejo de retorno das concepções originais, Anelli faz concessões ao presente. “É preciso abrir um diálogo com a sociedade, discutir o papel do museu, a atualidade de sua arquitetura. Tem que ser restaurado no que for possível, considerando ajustes às condições presentes.”
O novo presidente, Heitor Martins, diz que planeja fazer “uma reflexão desses temas”, e que no momento as prioridades são “tomar pé do museu”, atender questões emergenciais e que, no ano que vem, o foco será o acervo, “do qual a arquitetura faz parte”.
Martins condicionou a retirada das bilheterias do vão livre à conclusão do anexo, pelo qual o acesso ao museu passaria a ser feito, ideia que já havia revelado à Folha. Ele também já havia anunciado a reestruturação arquitetônica do segundo andar, removendo as paredes instaladas ali pela antiga diretoria, mas não deixou claro se isso também se refere à abertura dos vidros da fachada.
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